O Brasil é conhecido, em muitos aspectos, por suas particularidades na cultura, nos costumes e na natureza. Porém, não é somente isso, no campo jurídico, o país também tem as suas peculiaridades. Uma delas é o fenômeno interessante das leis que pegam e que não pegam.
Nos últimos três anos pudemos observar o tal fenômeno em relação ao Código de Processo Civil. Nos desdobramentos práticos da lei vigente, há algumas normas que não alcançaram a repercussão esperada ou pensada inicialmente pelo legislador. E, ainda que não haja respaldo técnico para tal fenômeno – uma vez que toda norma jurídica é apta a produção de efeitos enquanto permanecer vigente no sistema – é fato que em alguns casos parece que o Código não pegou.
O que não pegou no novo CPC
Vejamos algumas situações que, inclusive, foram “chanceladas” pelo STJ.
Rol taxativo do agravo de instrumento
De acordo com o art. 1.015 do Código de Processo Civil o recurso teria seu cabimento restrito às hipóteses contidas nos incisos, deixando evidente a intenção do sistema em limitar a recorribilidade imediata das decisões interlocutórias.
Como saída, deixou de haver a preclusão para a discussão, em apelação, das questões que não compreendidas no espectro do agravo de instrumento (art. 1.009). Boa ou ruim foi a opção do legislador. As dificuldades práticas trazidas pela taxatividade tal como estabelecida no dispositivo, resultou em severas críticas à nova sistemática recursal das interlocutórias.
Impulsionado por isso, o STJ decidiu, em sede de Recurso Especial repetitivo (REsp 1.696.396 e REsp 1.704.520), pela mitigação da taxatividade do rol previsto no art. 1.015 do Código de Processo Civil. A tese firmada pela Corte Especial no Tema 988 se deu no seguinte sentido:
o rol do art. 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, por isso, admite a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação”.
Tutela antecipada requerida em caráter antecedente
A segunda situação flexibilizada pelo STJ diz respeito à via processual apta a impedir a estabilização dos efeitos da tutela antecipada requerida em caráter antecedente, introduzida no sistema pelo art. 303 do CPC. De acordo com o art. 304, caput, a inércia do réu em interpor o “respectivo recurso” implicaria a estabilização dos efeitos da decisão antecipatória, situação que seria modificada apenas por meio da ação de reversão prevista no § 5º do dispositivo legal.
A alegada vagueza da expressão “respectivo recurso” usada pelo legislador gerou certa insegurança tanto na doutrina porque, segundo as vozes mais críticas, não seria possível estabelecer, com segurança, qual o recurso cabível a evitar a estabilização. Além disso, caso se concluísse pelo cabimento do agravo de instrumento o Código estaria, por via transversa, praticamente impondo ao réu o dever de recorrer, ainda que outra fosse a sua estratégia de atuação.
Sobre a questão, o STJ se manifestou em dezembro de 2018 no julgamento do REsp. nº 1760966/SP, fixando entendimento de que a apresentação de qualquer outro meio de impugnação à decisão antecipatória, a exemplo da própria contestação, impede a estabilização de seus efeitos. De acordo com a decisão da Terceira Turma,
(…) embora o caput do art. 304 do CPC/2015 determine que ‘a tutela antecipada, concedida nos termos do art. 303, torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso’, a leitura que deve ser feita do dispositivo legal, tomando como base uma interpretação sistemática e teleológica do instituto, é que a estabilização somente ocorrerá se não houver qualquer tipo de impugnação pela parte contrária, sob pena de se estimular a interposição de agravos de instrumento, sobrecarregando desnecessariamente os Tribunais, além do ajuizamento da ação autônoma, prevista no art. 304, § 2º, do CPC/2015, a fim de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada”.
Distribuição convencional do ônus da prova
A terceira situação que, ao menos até este momento, não pegou do novo CPC diz respeito à distribuição convencional do ônus da prova, admitida pelo art. 373, §§ 3º e 4º. Muito embora se tratasse de possibilidade já contemplada no sistema de 1973, talvez com menos precisão técnica, a convenção processual sobre ônus da prova não parece ter muita repercussão prática, mesmo no contexto atual.
É fato que o legislador deu importantes passos no incentivo à utilização de negócios jurídicos processuais, seja ampliando as hipóteses de convenções típicas, seja estabelecendo uma cláusula geral de negociação atípica (art. 190). Ainda assim, ao que tudo indica, a distribuição convencional do ônus da prova segue despertando mais interesse acadêmico do que prático. Uma justificativa plausível para esse fenômeno seja a de que tal modalidade de convenção inverte a lógica do processo. Por que alguém traria voluntariamente para si um ônus probatório que não é seu? Salvo em situações muito específicas e pontuais, difíceis de vislumbrar, é bem possível que neste aspecto o novo Código não pegue e sigamos com as hipóteses legais de inversão ou dinamização do ônus da prova.
Há muitas outras normas contidas no Código de Processo Civil que padecem desse curioso fenômeno de pegar ou não pegar. Em todos eles parece haver, além de questões técnicas (processual e/ou legislativa), um importante componente comportamental daqueles que operam a norma, que faz com que nem sempre o que está escrito seja, de fato, o que está escrito.
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